31 março 2024

UMA CASA NÃO É UM LAR


 A chair is still a chair

 Even when there's no one

 sitting there

 But a chair is not a house

 And a house is not a home

 When there's no one there to

 hold you tight,

 And no one there you can kiss

 good night.


        Burt Bacharach/Hal David (A House Is Not a Home)

 

        

Agora podia ser a minha sogra que descia e se detinha um momento a saber o que lia eu, reclinado no sofá verde do patamar. Mostrava a capa do livro, ela perguntava se era bom e fazia-se ao último lance de escadas, antes de desaparecer numa das portas do hall, como se passasse dos bastidores para o palco; era isso o que me parecia da perspectiva sobranceira onde me encontrava.

Regressava o silêncio, eu voltava ao livro, alumiado pela luz larga das vidraças, que ocupavam todo o pé direito do patamar, uma luz tamisada pelos reflexos verdes do grande pinheiro manso, de copa espreguiçada em dossel sobre o jardim, as pontas verdes das agulhas a beliscar os vidros. Uma ocasião, o meu sogro tivera a inspiração de mandar abater a árvore, citando-lhe as desvantagens: a sombra sobre a casa; o empedrado do quintal levantado pelas raízes; as pinhas caídas, o manto de caruma a atrair fogos e bicharada; a tonalidade esverdengada que salpicava os vidros fixos do patamar, impossíveis de limpar a partir do interior...

Felizmente, ninguém, nem sequer a empregada encarregue de manter as janelas cristalinas, se prestou a câmara de ressonância da ideia, pelo que a peregrinação se ficou pelas intenções e a copa oblonga do pinheiro ali continuou, muito além da morte do meu sogro, bem depois de a casa ser fechada e vendida e de a minha sogra ter  esquecido por completo que ali morara durante cinquenta anos.

Agora, no caminho de deixar o hall, a minha sogra poderia ter optado por rodar a maçaneta transparente da porta para a sala de estar e, entrando, ter deparado com a nora recostada no sofá cor de mostarda, um cigarro comodamente entalado na boca, pois necessitava ambas as mãos para folhear e alisar as páginas, mais altas do que largas, de um semanário. 

"Ah, já cá estás!", diria ela numa prazenteira constatação de boas-vindas.

"Cheguei há uns três quartos de hora, mas o António, que ia a sair, disse-me que a sogra ainda estava lá em cima."

A cunhada que folheia jornais não é mais casada com o filho da minha sogra, mas mantém-se na família e não se nega jamais a qualquer sugestão para que ali jornadeie um fim de semana, ou se junte a um outro pretexto festivo. É claro que a presença poderia ser sempre justificada  pelo alibi de acompanhar aos avós os dois filhos que vivem com ela, mas a verdade é mais extensa... Ela ama aquele lugar; encontrou ali tudo quanto uma casa deveria ser. Talvez por vir de uma gente um tanto formal, distante, incapacitada de alcançar a arte gregária da culinária e que arrisca encomendar uma pizza para a ceia de Natal, pois tanto faz o que se come... Não podia ser mais o oposto do que acontece na casa onde agora vagueia pelas páginas dos jornais: ali come-se com gosto e acarinha-se o prazer de ver os comensais apreciar o que comem; a cozinha é um prolongamento imprescindível da sala de jantar e é habitual encontrar por lá os restantes membros da família, encaixados em todos os espaços livres e contribuindo para o sucesso da refeição que se prepara: um fatia o rosbife braseado accionando a lâmina serrilhada de uma faca eléctrica tremente, outro revolve a salada com a maestria de um louco; uma outra, envolta em baforadas, verte na pia da banca a água onde cozeram as batatas. 

Quando se chega e toca à porta, é a senhora da casa que vem abrir, para nos envolver num abraço estreito que deixa os próprios filhos à beira do embaraço.

"Mãe, estás a magoar-me", poderá queixar-se um deles, num riso nervoso de resistência ao abraço vindo directamente da infância.

"Vou à cozinha, fazer um café; queres que te traga alguma coisa?"

A minha cunhada suspende o restolhar do jornal; fica-se a pensar... Depois, talvez já a sonhar com o almoço e em como será doce a breve penitência da espera, agradece, diz não, pergunta se é necessária ajuda "lá dentro". Descartando a necessidade e conhecendo-a bem, a sogra atravessa a sala em direcção à porta para a copa, deixando no ar:

"Olha que ainda pode demorar: foi  o António que ficou de trazer os mariscos para o arroz..." 

A sala onde esta conversa acabou de se evaporar em silêncio, é ampla e ocupa todo o espaço entre duas das paredes mestras da casa. Serve comodamente o propósito de ser sala de estar e de jantar, e as zonas destinadas a cada uma delas são sugeridas por uma boca de lareira e pelo conjunto de tapetes, sofás e maples dispostos sobre o parquet encerado. Quem entra do hall, acha-se na sala de estar: um sofá de cor mostarda com três lugares e dois maples a condizer, ao abrigo de uma parede decorada por quadros da escola impressionista francesa e portuguesa, e uma pequena arca de madeira a funcionar como mesa de apoio, onde, no momento, repousam as pernas cruzadas da minha cunhada, os pés contentes baloiçando o ar como a cauda de um cachorro. 

Margarida continua entretida no seu restolho privado, sentindo promissor o futuro, pois sabe que o nosso sogro trará, no regresso, para além das gambas, das ameijoas e dos coentros, mais uma ou duas revistas, certamente um daqueles jornais maçudos que somente será lido por se ter esgotado a leitura de todos os outros. Consolada, põe de lado o caderno principal, acende um novo cigarro e pega no suplemento, redimida por tantas páginas a pastorear-lhe o apetite. O local onde está é-lhe tão familiar, tão envolvente, que não se imagina a prescindir dele; e, antes de regressar à leitura, deixa passear o olhar pela da sala de jantar ao fundo, que aguarda, serenamente imóvel, que a mesa de madeira escura, em permanência aumentada por uma tábua extra e coberta por uma toalha branca, venha a ser posta e usada. 
Agora, do sofá do patamar, apercebo-me de uma porta a fechar-se acima da minha cabeça. Levanto os olhos do livro para adivinhar o aparecimento de D. Lívia, mãe da minha sogra, avó da minha mulher e dos meus cunhados, bisavó dos meus sobrinhos e do meu filho... O meu sogro, ao casar-se com uma viúva bonita (e sem ainda trinta anos), herdou, juntamente com uma sogra também viúva, um trio de enteados de idades escadeadas, todos os três com um só dígito nos anos contados. 

Aí vem ela, evoluindo cautelosamente e apoiando-se ao de leve numa bengala. Ao ver-me, e antes de iniciar a descida dos degraus, levanta um nadinha a bengala, saudando-me com a  borracha afixada na ponta e que faz lembrar um daqueles calços que se pregam ao chão para evitar que as portas batam nas paredes. Falta-lhe agora um degrau para atingir o terreno seguro do patamar; levanto-me para a cumprimentar e perguntar se quer ajuda para o longo lanço de escadas até ao hall, um percurso onde não existe corrimão onde se possa amparar.

"Não, deixa estar", diz no seu tom um pouco seco, definitivo, "apoio-me à parede - já estou acostumada". 

"Tem a certeza?", insisto. Não passarão três anos e eu mesmo, convalescendo naquela casa de uma doença grave, que praticamente me obrigou a reaprender a andar, terei horror àquele lanço desamparado das escadas, sobretudo na descida, pois é mais assustador deparar com o vazio ainda por percorrer do que enfrentar esse vazio quando nos ficou para trás das costas.

"A sério? Não custa nada fazer-lhe companhia até lá em baixo...".

"Não, não, continua a ler o teu livro...", responde num tom que envolveu o meu entretém numa ténue capa de desmerecimento.

Mas não me é assim tão fácil regressar no imediato às minha páginas, e fico-me a vê-la descer, a mão ossuda e de veias azuladas apoiando-se discretamente à parede do lado interno dos degraus. É leve e, mais depressa do que se suporia, chegou ao hall e demandou a sala de estar - ouço daqui tilintar nos caixilhos, os pequenos espelhos que forram a porta. 

Lá dentro, a meio do salão, vigiados pelos sofás azuis dispostos em torno do fogão de sala, acotovelam-se duas filas de passe-partouts sobre o lintel da lareira. Ali se perfilam todos os membros da família, mesmo as aves de arribação que, como eu, vieram, estiveram e partiram. Algumas fotografias pintalgam de preto e branco o colorido da maioria - uma delas retrata a mãe da minha sogra ainda na meia idade, muito antes dos dias da bengala; outras são já dos dias da bengala e dos que vieram depois, recordando a quem lhe sobreviveu aquela pessoa que ali morou ao longo de décadas, encaixando-se e apagando-se tão diplomaticamente quanto pôde, a fim de não chocalhar o ambiente com a sua presença.

"Cada um tem o seu feitio...", é tudo quanto se permite comentar quando os restantes se exasperam com a personalidade do meu sogro, um homem que arrasta consigo céus cinzentos, ainda que o dia vá de perfeito anil e uma brisa perfeita agite delicadamente as frágeis flores das buganvílias que espreitam a varanda.

Ouço o clique familiar de uma chave a ser introduzida na porta da rua, um ruído atenuado àquela hora do dia, mas que, à noite, no silêncio, invade o hall e sobe pelo saguão das escadas, cronometrando quem chega a horas tardias. É o meu sogro, regressado das compras, e que, mal bate a porta, chama:

"Zé?!" 

"Ó Zé!", vai engrossando o chamamento à medida que não chega uma réplica imediata. 

O meu sogro é incapaz do mais modesto acto doméstico, pelo que é totalmente dependente da mulher para sobreviver. Além do mais, na hierarquia das obrigações, acha que a principal é a de que ela esteja presente de cada vez que a resolva chamar.

"Zé!; ó Zé!"

Ficando sem resposta e (tendo-me eu encolhido no sofá) não vendo alguém que lhe acuda aos sacos com que vem ajoujado, precipita-se pela porta que dá para a copa e a cozinha.

"Ah, estás aqui! Fartei-me de chamar! Para que horas é o almoço?"

Sentada à mesa da cozinha, entretida a saborear o seu café, a minha sogra é a imagem aparente da tranquilidade.

"Nunca antes das duas. O Pedro, a João e os miúdos ainda não chegaram da praia; além de que é preciso tratar de tudo isso que trouxeste..."

O meu sogro, que tem uma perspectiva mágica da culinária, garante que o peixeiro lhe garantiu que as amêijoas estão livres de areia e podem ir directamente para o lume.

"Dizem-te sempre isso, António, mas depois és o primeiro a queixar-te se encontras um grão que seja..."

O meu sogro consulta o relógio de pulso, exasperado, e decreta querer comer quanto antes - não quer esperar tanto tempo.

"Está bem", concede a minha sogra; "aqueço-te sopa e um filete de pescada dos que sobraram ontem; vais comendo, sozinho."

O meu sogro vira costas, hesita entre a porta da sala de jantar e a do hall e acaba por se decidir pela última - vai chegar a minha vez.

"Ah, olá, estás aqui...", diz do meio dos degraus do primeiro lance de escadas, implicando na frase que se poderá ter apercebido de eu estar ali e não ter reagido à sua chegada a casa.

"Sim; estou a ler um pouco - este sítio tem uma luz magnífica a esta hora."

"É", consente, "e poderia ser bem melhor se não fosse o pinheiro a tapar os vidros."

Não respondo. Com o meu sogro, a melhor estratégia é procurar não existir, pois agarra-se a qualquer presença como uma carraça à orelha de um cão. Não há nada que mais o deleite do que chegar a um sítio e desestabilizar quem lá se encontra, impedindo-o de continuar a fazer o que porventura esse alguém esteja a fazer. Por exemplo:

Entra na sala, senta-se no seu maple, abre o jornal e põe-se a espreitar por cima deste. Ah, eis uma vítima no seu radar, neste caso a minha cunhada Margarida a ler regaladamente um semanário, as pernas cruzadas sobre a pequena arca de madeira. Durante um longo minuto parece que nada vai acontecer, que ambos leem... De seguida, o meu sogro pigarreia e comenta uma qualquer insignificância que encontrou no seu jornal, usando um tom irónico e dando uma gargalhadinha de desdém. Como nada lhe chega dos lados da nora, pergunta:

"Já viste isto, ó Margarida? Só num país como este é que se pode passar tal coisa..."

A minha cunhada emite um breve grunhido de retorno, e continua a ler. Talvez se ache num dia de sorte e pense que escapa... Mas nem por sombras: nos próximos dez minutos ele emitirá opiniões sobre o que debica no seu jornal e quando se der conta de que esse tipo de investida não resultou, passará a comentar o que, de onde está sentado, consegue ler nas páginas traseiras do jornal onde a minha cunhada escondeu a cara - assim já não poderá ela sustentar que desconhece ou não está por dentro do tópico que ele glosa! Finalmente, ela desiste, levanta-se e anuncia que vai à cozinha, ver se por lá necessitam de ajuda... O meu sogro permanece regaladamente sentado, debicando agora o jornal que a minha cunhada abandonou sobre a arca e aguardando a chegada da próxima vítima.  

          

Suponho que, na calmaria da meia hora depois da uma, adormeci no sofá, pois, de repente, tenho a Domi ao meu lado, a comunicar qualquer coisa.

"Tio, a avó manda dizer que o almoço está na mesa."

A Dominique vive em Bruxelas com os pais e o irmão, mas se está naquela casa gosta, como eu, de entreter tempo no patamar. Acho que, nos seus nove anos, olha para aquele lugar como se fosse assim uma espécie de casa na árvore, um refúgio de onde se pode antecipar a aproximação dos acontecimentos.

"Já chegaram todos?", pergunto, tentando situar-me.

"Sim... Os tios e os primos chegaram agora do Guincho - estão lá em baixo, no jardim, a passar-se pela mangueira, e já sobem. O avô está furioso por ter almoçado sozinho; diz que vai sair para tomar café na Sacolinha e que não espera por mais ninguém! A avó disse que fosse, e ainda lhe encomendou coisas para o lanche", ponteia ela com um sorrisinho.

Meneio a cabeça, sorrio também; digo que vá descendo - eu irei já. Mas ela quer ainda saber de que trata o livro que escorregou para o chão do patamar, quando a minha consciência deixou de ter alento para o segurar entre os dedos.

"É, mais ou menos, uma história de fantasmas... Uma família completa deles, que mora numa casa habitada por gente viva. Mas ninguém - de quem lá vive - os consegue ver nem sabe que moram também ali..."

Ela sabe bem o que são fantasmas, quer antes saber se acredito nisso. Talvez tenha um pouco de receio e se sinta mais tranquila se eu disser que são apenas produto da imaginação. Afinal, ando a ler um livro de fantasmas em absoluta tranquilidade, até adormeci ao fazê-lo.

"Achas que eu já podia lê-lo?", pergunta apanhando o livro da carpete e estudando a capa.

"Mmm..., não sei se ias gostar e - mais do que isso - desconfio que a tua mãe não ia gostar...", respondo pensando na minha cunhada Nita, que prefere livros com histórias positivas e finais felizes.

"Mas a Carolina lê! Adora ver filmes destes..."

"Não queiras comparar: a tua prima é muito mais velha do que tu!"

"Sim, mas já os lia quando era pequena: às escondidas, até; disse-me. E disse que a deixavas ver filmes de terror em tua casa quando tinha treze anos!"

"Tá..., voltamos a falar quando fizeres treze anos. Vai descendo e diz que fui só lavar as mãos...", despachei-a, pois aquela linha de argumentação já dera o que tinha a dar. Fantasmas...

Agora a casa foi fechada e vendida, estava a crescer demasiado para o número de pessoas que lá viviam; os lances de escadas multiplicaram-se, tornaram-se perigosos, coitados, eles que viram tanta gente subir e descer. A maior parte do recheio foi já retirada e transportada para o novo apartamento na baixa de Cascais... Mas como as chaves ainda não foram entregues definitivamente aos novos proprietários, algumas peças de mobiliário ainda aguardam destino na casa velha. Uma delas é o sofá verde, que continua no patamar, actualmente na penumbra, pois os reposteiros das largas janelas foram corridos, assim o sol não crestará a madeira dos degraus nus.   

Fantasmas... Quando se está na infância, como estava a Dominique nesse dia, os fantasmas arrepiam, tem-se-lhes pavor instintivo, à flor da pele, sem precisarmos de raciocinar sobre eles, sobre a sua substância ou existência. O tempo passa e esse medo atenua-se, descoloriu-se, pode até tornar-se risível: como pudemos um dia acreditar ou recear tal inexistência?! Mais tarde, bastante mais tarde, quando o ruído da vida regrediu à sua real importância, é possível que nos venhamos a aperceber que, afinal, os fantasmas existem e eramos nós, todos nós: eu, tu, ele; nós, vós; eles. 

 

© fotografias de pedro serrano, Cascais, 2007 e 2016.

17 março 2024

LA PALOMA

Si a tu ventana llega una paloma 

Trátala con cariño que es mi persona... 

    Texto: fragmento do poema da canção "La Paloma", composta em 1863 por Sebastian Iradier e Salaverri; 
© fotografia: pedro serrano, Ponta Delgada (Açores), Junho 2008. 



30 julho 2023

LOJA DOS TREZENTOS

Com a presteza do merceeiro que tira o lápis detrás da orelha e sarrabisca uma conta no papel de embrulho, o ministro da saúde comparou nos telejornais a República de Cuba a uma empresa de prestação de serviços, daquelas a que o ministério recorre às colheradas para esticar a manta de retalhos do Serviço Nacional de Saúde.

Segundo o homem, quando paga a uma destas empresas não tem de se preocupar se o dinheiro vai todo para os médicos subcontratados através dela ou se a direcção da empresa mete dinheiro ao bolso no processo. Pizarro, aliás, acha muito natural que o faça... 

Assim, para ele fica resolvida a questão de o governo de Cuba meter, ou não meter, ao bolso oitenta ou mais por cento do dinheiro pago aos seus médicos pelos países para onde os exporta, como se fossem charutos ou barris de rum. Pizarro não tem nada a ver com isso, lava daí as suas mãos, o que, como se tem visto pelo modo como comanda o SNS, é o que ele sabe fazer melhor. Lavar as mãos com frequência é uma coisa boa, o ministério a que preside este grande estadista recomenda-o amiúde. 

Portugal anda atarefado a contratar 300 destes médicos semi-escravos e, pelos vistos, não se interessa pelas condições em que o faz, tal como os passadores e intermediários não se incomodam com o que acontece aos imigrantes que se afogam no mediterrâneo ou com os que atulham as estufas do Alentejo. Problema deles.

É claro que, neste seu empreendedorismo conquistador, Pizarro é forçado a ir arregimentar esta mão de obra bem-comportada ao terceiro mundo, neste caso à América Latina (África não tem sequer médicos para exportar), pois em nenhum outro local do mundo conseguiria, com o que Portugal oferece e paga aos médicos convencer, sequer, um único.

Tendo já perdido a capacidade de me espantar com a fibra e o estofo dos governantes que nos calharam em sorte, limito-me a corar de vergonha por habitar um país onde se vai acentuando, a cada dia que passa, o aroma esclavagista que nos tornou célebres noutros tempos. 

 

11 maio 2023

CADA CAVADELA, DUAS MINHOCAS

Temos de agradecer à TAP, e às peripécias com ela relacionada, o upgrade do dito popular "cada cavadela, sua minhoca". Agora, ainda entorpecidas pela luz do sol com que a enxada lhes iluminou a toca, os invertebrados bichos surgem aos dois, por vezes três, por cavadela.

Confesso que a maior surpresa desta semana foi ver aparecer novamente à luz do dia Constança Urbano de Sousa, que eu, como penso que a distraída maioria dos portugueses, pensava politicamente defunta e sob terra firme! Qual quê! A outrora especialista em abraçar corporações inteiras de bombeiros migrou de mansinho para as secretas e é agora expert em intelligence, coisa sobre a qual ninguém apostaria que escondesse uma jazida. Pois, mas o certo é que a mulher é a manda-chuva do Conselho de Fiscalização dos espiões e, nessa superlativa capacidade, não achou nada de especial que um serviço nacional de informações secretas fosse a casa de um cidadão arrestar-lhe o computador. Bafejada pela sorte, a nossa fiscal Mata-Hari, foi ouvida no Parlamento à porta-fechada, e foram os portugueses que ficaram a perder com a confidencialidade, que os inibiu dos momentos de rara beleza que, a crer no que vimos no tempo dos incêndios, devem ter proporcionado as suas explicações. À saída (e pela nesga que nos foi dada oportunidade de vislumbrar nas respostas que deu aos jornalistas), a senhora (jurista de formação) foi incapaz de enunciar qual o artigo da lei em que se baseou a intervenção do SIS neste corriqueiro assunto de polícia. Ficámos, no entanto, a saber que, afinal, aquilo que o ainda alegado Ministro das Infrasestruturas e o Primeiro Ministro consideraram, repetida e publicamente, um execrável roubo não foi afinal roubo nenhum, pois se fosse roubo o SIS não poderia ter metido mão no assunto. Percebeu? Eu também não.

Outra das felicidades revelada esta semana foi a de que o presidente da Comissão Parlamentar à TAP (Seguro Sanches, do PS) sentiu a honra violada pelas insinuações da Oposição de que quereria diminuir o tempo que cada deputado dispõe para, nas audições da Comissão, interrogar os convocados. Como tal, Seguro demitiu-se com fragor e, formoso mas não seguro, abandonou a função de queixo esticado como todas as donzelas ofendidas. Ora quem é que o PS (através de Santos Silva) foi logo buscar para o substituir? Lacerda Sales, o médico traumatologista que os portugueses bem conhecem dos tempos do Covid, quando esteve no Ministério da Saúde com a única função visível de amaciar as arestas mais ásperas da malograda ministra Marta Temido. Especialista em choques e apertos, amplamente rodado em atitudes esfíngicas e em não dizer nada que possa constar, o homem aceitou prontamente a missão, pois o que é isso comparado com os embates do mau-feitio combinado de Temido, Gouveia e Melo e Graça Freitas?

09 abril 2023

NOVA LOCALIZAÇÃO AEROPORTO LISBOA: BERLENGAS, PROPOSTA DE UM ANÓNIMO


Berlengas (avião a branco): proposta enviada aos responsáveis pela consulta pública.

Nome do proponente: Pedro Serrano

Localização: -1064467.3023676332,4752742.124779818 
Localidade: Berlengas
Número e dimensão das Pistas: 2, dimensão de geometria variável
Capacidade de expansão em hectares: infinita, depende apenas de cimento armado, flutuadores e pilares oceânicos.
Encontra-se limitado por alguma restrição aeronáutica? Se sim qual?: Não, apenas gaivotas e turistas
Encontra-se sobre alguma restrição de área protegida? Se sim qual?: Nada que não se consiga contornar
Esta opção estratégica destaca-se das restantes na medida em que….: Proporciona uma vista maravilhosa na aterragem e fica a pouco mais de 60 km de Lisboa, com a A8 mesmo ali ao lado.
Nome e descrição dos documentos de viabilidade técnica em anexo: sem anexos, trata-se apenas da minha opinião e pretende chamar a atenção para o populismo e grau de leviandade contidos no abrir às sugestões de quem lhe apetecer uma opinião sobre um assunto tão sério e eminentemente técnico. É quase o equivalente de um cirurgião perguntar a um doente como prefere que ele use o bisturi para o operar.
Com os melhores cumprimentos
pedro serrano, CEO aerotransportado

10 março 2023

VADE MECUM AGUIAR!



Meus Deus, que lhes terá dado? Ainda o país não tivera tempo para começar a arrefecer da indignação causada pelas atrocidades canoras do bispo de Beja sobre as vítimas deverem perdão aos seus agressores, e já bispos, arcebispos e cardeais se precipitavam para rádios, jornais e televisões vociferando que afinal os padres suspeitos iriam ser afastados, que seriam devidas indemnizações aos ultrajados e, claro está, que toda a Igreja andava em grande sofrimento com o sucedido. Um padre no activo, que em tempos disfrutou uma deliciosa noite numa tenda de campismo ladeado por uma rapariga de 11 anos e outra de 12, veio até confessar aos microfones da SIC que a gente, lá em casa, nem calcula o sofrimento que ainda o acomete, e já lá vão mais de dez anos sobre os tempos em que apalpava as mamas e o rabo às jovens católicas que lhe apareciam na sacristia. O homem, coitado, ainda passa horrores não inferiores às cinco santas chagas de Cristo; sofrem todos eles horrores, um horror que pode até ser retard e iniciar-se quase trinta ou quarenta anos mais tarde! É uma coisa crónica, devia ser classificada como profissão de risco.

Mas, a crer em D. Américo Aguiar (bispo auxiliar de Lisboa e da Pala), tudo o que se gerou na sequência das declarações da semana passada de bispos e cardeais não passou de uma grande infelicidade, grande parte da qual por responsabilidade directa do Vade Mecum.

Vade mecum, para os nossos leitores mais distraídos, significa literalmente "Vai Comigo", mas, na prática, refere um manual de procedimentos, uma espécie de livro de bolso com instruções de "faça você mesmo". Há Vade mecum para todas as áreas, existem em Medicina, em Direito, em Informática, até em Espiritismo, e, em última análise, pode exemplificar-se um livro de receitas de cozinha como um Vade Mecum culinário.

Pois o bispo da Pala foi o escolhido para nos vir informar que muita da culpa pelo imbróglio teve origem no Vade Mecum que eles usam lá na Igreja e de que seguem os artigos e as alíneas religiosamente, dado que o livrinho tem mais peso para eles do que, sei lá, a Vida dos Santos, a própria Bíblia. E o Vade mecum lá deles proíbe terminantemente que se use o termo "suspensão" para designar o afastamento de padres e outros incriminados do género: é que optando por usar o termo suspensão ter-se-á de, em conformidade, começar por abrir um inquérito, um processo, fazer investigações aprofundadas, mandar para o Vaticano, esperar a resposta do Vaticano, depois vai ao Ivo Rosa, ao Tribunal da Relação, ao Tribunal Constitucional, Belém, Jerusalém, uma fortuna em tradução e selos, um inferno de burocracia, prescrições, etc. Por isso aquela confusão de toda a gente ficar a pensar que a Igreja não ia afastar nenhum suspeito de agressão sexual a menores... É claro que vai, muitos, paletes deles se preciso for!

Tudo isto veio esclarecer D. Américo Aguiar, indigitado porta-voz por unanimidade e aclamação, tendo em conta o seu talento para anestesiar e manter em sentido jornalistas, o seu à vontade de mesa-redonda frente às câmaras e microfones, atributos que desenvolveu e exercitou na época em que trabalhou na Câmara, em Matosinhos, para o saudoso Narciso Miranda e para o PS.

"Voto em ti, Aguiar, tens o parlapié necessário para enfrentar a matilha...", teria dito, comovido, um dos prelados na noite da votação.

"Sim, já os vais conhecendo bem, lá da Pala e das Jornadas, tens à vontade e não te engrolas, como eu, em momentos infelizes...", terá alegadamente acrescentado D. Manuel Clemente.

"E não é só isso: dominas o Vade mecum do jargão político para se safar de um anzol: os mal-entendidos, o retirado do contexto, o não foi isso que eu disse, os não recordo ter dito isso, os não sabia de nada, os amigos jornalistas..."

E todos no conclave concordaram que era uma grande coisa o ter-se passado por uma experiência política prévia para enfrentar momentos de aperto, ainda que eclesiásticos.

"Uma mão lava a outra...", resumiu um dos presentes.

"Safa", desabafou um outro à saída da cripta onde tivera lugar a reunião, "que foi por um triz! Se não fora esta ideia do Aguiar de se apostar tudo na retórica, de jogar com a semântica, ainda nos encalacrávamos todos! Pois se até um prelado já Santificado, como o João Paulo II, não escapou à devassa!"

"Tempos de inclemência...", murmurou um terceiro.

"O Clemente?", interpretou um prelado pondo a mão em concha sobre o Sonotone, "esse e o Ornelas é que deram origem a toda esta avalanche, raios os partam!"

"Colega, olhe a outra face..."

 

 

  

08 março 2023

OS QUE FICAM À PORTA

Uma a uma, as ratazanas esticam o focinho fora da toca para, num discurso concatenado à pressa entre elas e empoado pelo makeup da hipocrisia piedosa, virem confirmar publicamente a sua vocação de encobridores. Cerram fileiras. Primeiro veio José Ornelas (bispo do eixo Leiria-Fátima), em seguida o inefável Manuel Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa), quase em simultâneo com o muito convencido de si, Manuel Linda (que actualmente vexa o bispado do Porto, habituado a homens de outra fibra). Apareceu também à luz, embora um tanto cosida com as paredes, uma ratazana que responde pelo nome de Manuel Felício (bispo da Guarda) e, mesmo ontem, foi-nos servido, à hora dos telejornais, o vomitado de João Marcos, bispo de Beja. 

Todos vieram descartar a hipótese de afastamento preventivo dos padres acusados e suspeitos de abusos sexuais sobre menores, a que foram acrescentando joias da sua lavra, tal o sibilino José Clemente, que em vozinha adocicada e olhos revirados de "não falemos sequer dessas coisas", considera as indemnizações às vítimas como algo que, só de ser enunciado, poderia ser considerado insultuoso por elas, vítimas...  

Mas, o mais espectacular argumento de todos, veio do bispo de Beja (um dos que - e agora percebe-se a razão - se negou a participar nos trabalhos da Comissão Independente que investigou tudo isto), prelado que afirmou, entufado de piedade pelos predadores seus colegas de profissão, que em tudo isto está em falta o perdão, isto é: as vítimas devem perdoar os seus agressores, uma vez que eles se mostrem arrependidos. O perdão, acha o tipo, é o melhor tira-nódoas e apaga todas as marcas e manchas, torna praticamente desnecessária a justiça terrena (à atenção do Ministério da Justiça e dos tribunais entupidos). 

Deste modo, meu filho, se te entupiram a garganta, se o cu te ficou a arder ou se sangraste por ele, se a tua vida adulta ficou irremediavelmente abalada e tolhida pelo que te aconteceu quando andavas na catequese ou te ajoelhavas no confessionário, problema teu. Só te resta perdoar, pois os agressores estão muito arrependidos de se terem cevado em ti, uma e outra vez. Perdoa e engole.

Neste cortejo de horrores, a que os mais altos responsáveis pela Igreja Católica têm sujeitado os ouvidos da opinião pública, apetece perguntar se o Vaticano (e o Papa Francisco) estarão a par do reles espectáculo em cartaz neste canto da Península, estrelado pelos seus retalhistas e intermediários na condução da Fé. Será que o homem, lá em Roma, estará a acompanhar devidamente tudo isto? Será que alguém com a proximidade e os pergaminhos do nosso conterrâneo José Tolentino Mendonça (cardeal, assessor do Papa, cronista no mais lido jornal da terrinha) se tem debruçado e acarinhado esta causa? Ou será que vai ser forçoso esperar por Agosto e pelas Jornadas Mundiais da Juventude, para ir em procissão à Pala, manifestar ao Papa a indignação pelo que se passa por estas bandas e implorar-lhe que acerte uma vassourada nestes seus associados, que nada têm feito senão ignorar o que ele aconselhou? 

Abençoada Comissão Independente, penso mais uma vez para com os meus botões, que, suponho, deve andar completamente horrorizada e incrédula ante as reacções que despertou o cumprimento da sua missão. Abençoada, no entanto, pois mesmo que o seu trabalho não sirva para mais nada, enxotou até à luz do dia toda esta rataria sebosa, aninhada, instalada. E se a suas excelências, bispos e cardeais, não lhes é suficiente a simples informação de um nome para afastar um padre abusador, ficamos pelo menos a conhecer o nome e a cara de quem é quem neste xadrez, dos que ficam a guardar a porta enquanto o outro, o simples e anónimo padre Albino, vai à horta colher os tenros rebentos. 

"Deixai vir a mim as criancinhas!" 

"Despache-se padre Albino, que eu não posso ficar aqui, a tomar conta, toda a vida e já me bastam as chatices que tenho tido com a Comissão Independente!"

04 março 2023

O PATRONO DOS ABUSADORES

 

Chegada a hora de se pronunciar sobre as conclusões da Comissão Independente de Acompanhamento dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja e de vir dizer ao povo o que se propõe fazer sobre tão sinistro assunto, propõe-se o quê a Igreja portuguesa? Nada, nadie, rien, nothing, nichts; um rotundo e espantoso nada!

Ficámos a saber que por iniciativa da Igreja (como organismo colectivo) nenhum dos padres abusadores será afastado de funções (a não ser se condenado em tribunal), nenhuma vítima será indemnizada (segundo a Igreja é uma responsabilidade do padre violador), mas farão o grande favor de providenciar apoio psicológico às vítimas, desde que estas o requeiram na diocese onde foram abusadas. Finalmente, como tinham de tirar algum gesto de amor ao próximo da mitra, irão promover a construção de um memorial às vítimas de abuso, como se estivessem a referir vítimas de guerra, de terremoto ou de um outro acontecimento inevitável ou de força maior. Se me é permitido contribuir com ideias para esse memorial, proponho uma pala, como aquela que se preparam para nos fazer pagar nas Jornadas da Juventude, e sob a qual vários dos abusadores ou encobridores se irão resguardar do sol inclemente de Agosto. Ou talvez uma calçadeira com setenta metros de altura, um metro por cada ano de abuso oculto, ou em alternativa, um confessionário à prova de som e com retrete incorporada.  

Quem veio comunicar tudo isto publicamente, num tom onde imperava uma agressividade rebarbativa, foi um cavalheiro chamado José Ornelas, que acumula o ser bispo de Leiria-Fátima com a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, um graduado que, não assim há tanto tempo, andou por aí semienrolado numa situação de alegado encobrimento dos abusos sobre os quais foi agora convidado a pronunciar-se. Lembram-se? O Presidente da República até lhe telefonou a avisar que o caldo estava a azedar para os lados dele... 

Para ser franco, não fico tão espantado assim com este desfecho-éclair, pois sempre tive a sensação de que todos estes senhores estavam a fingir e só se moviam por força do aguilhão da opinião pública e desse prego no sapato chamado Comissão, uma comissão que, embora criada por eles, teve a lata de se portar de forma independente! Na hora da verdade, a Igreja continua a tentar esconder-se sob as varetas do guarda-sol, sem se dar conta de que o pano está mais que roto, está em farrapos. Não há batina que lhes valha. 

Em tudo isto há uma só coisa bonita de se ver: o trabalho que a Comissão Independente executou e apresentou no prazo em que prometeu que o faria! Um trabalho aturado, cuidadoso, cauteloso, isento e muito inteligente no modo deu a conhecer as suas conclusões. Valha-nos isso, num país onde a Justiça, pelo visto incluindo a Divina, está moribunda e tresanda.

    

 

 

 

29 janeiro 2023

O OUTRO LADO DO CAMINHO


 

Becas.
E
ncontrava-o todas as semanas, o que, amiúde, é falar por defeito. Por vezes, via-o dia sim, dia não, ou mesmo todos os dias. 

Morava à distância de duas casas e costumava passar pela minha porta a ir passear os cães ao fim da tarde. Sempre Serra da Estrela, enormes, felpudos e com aquele ar pachorrento que esses cães aparentam. Antigamente, eram dois que seguiam pela trela, quase me parecia que conduzia um trenó pela rua fora.

"Olá, engenheiro...", cumprimentava do lado de dentro do meu portão do quintal.

"Olá, doutor...", devolvia ele com um sorriso acolhedor e tranquilo. 

E seguia, em marcha pausada, pela rua fora, a caminho da praia e do poente, que nem ele nem os cães podiam dispensar isso.

Os anos passaram e os cães, que habitualmente duram menos do que nós, foram morrendo e sendo substituídos por outros, para mim iguais aos anteriores. Ultimamente, era só um cão que ele guiava, a caminho da praia ao fim de tarde. 

A missa de corpo presente foi na igreja aqui ao lado, pelas seis e meia da tarde, aproximadamente a hora a que costumava andar em passeio com os cães. Como são, pouco mais ou menos, uns duzentos metros daqui até lá, fui a pé. Estava um fim de tarde gelado e nítido de um dia de Janeiro e, em frente aos meus olhos, o céu pintava-se de um azul irreal de manto de Virgem e nesse azul demasiado puro penduravam-se, aqui e ali, muito aprumadas, meia-dúzia de pequenas nuvens bem recortadas, macias e douradas como se tivessem sido imersas na calda do sol. Desci a rua fitando esse céu e, de súbito, adivinhando que emprestava os meus olhos aos olhos do engenheiro, para que ele pudesse ver um último poente na sua rua.  

De facto, ia pensando durante a cerimónia, eu conhecia o homem há mais de trinta anos, desde que me mudara para vir viver onde moro. Ele já por aqui andava, engenheirando, topava com ele nas esplanadas dos cafés da praia, nas ruas, na vila, por vezes. A cena dos cães sobreveio mais tarde, quando se reformou, pois o coração dele nunca ficou muito bom desde aquele primeiro enfarte. A última vez que o vi terá sido num café da vila que, nesses dias da primeira semana de Janeiro, se atarefava a vender bolos-reis. 

"Estou habituado a vê-lo na Praia, não sabia que parava por aqui...", disse-me do balcão onde encomendava doces de pós-Natal para o novo ano.

"Sim, sou frequentador assíduo..."

"Bom Ano, doutor", desejou-me.

"Bom Ano, engenheiro", desejei em retorno.

A missa teve uma duração moderada, o padre era discreto e alguns dos membros mais jovens da família cantaram cânticos, acompanhados à viola, em voz contida; à vez, subiram ao altar a ler trechos dos evangelhos.

Sim, há muitos anos... Um dia, no Verão de 1996, estava eu internado, ia para dois ou três dias, no hospital de Torres Vedras, a recuperar, a arrastar-me em direcção à superfície de um enfarte do miocárdio brutal, quando vi abrir-se a porta da enfermaria e colocarem na cama em frente à minha um doente que se contorcia com dores. Dores no peito, tremendas, demoraram eternidades a serem pacificadas e eu em frente, deitado, incomodado e inútil, a assistir a tudo. Quando o coração dele se acalmou e o homem adormeceu, reconheci nele o engenheiro Patrício, que construía à época uma casa ao lado da minha. O enfarte surpreendera-o na obra, quando andava, de cigarro na boca, a transportar material de construção. Fomos colegas de enfarte e, por vezes, quando nos encontrávamos na nossa rua, parávamos a falar disso com a contenção de tipos recordando episódios que, como cenas de guerra e de combate, se devem manter íntimos.

"Faz esta semana quinze anos que estivemos lá em Torres, nos Cuidados Especiais..."

"Quinze anos", espantava-se ele, "já?!" 

Durante a missa, um filho subiu ao púlpito e leu um trecho de Santo Agostinho, santo que viveu entre os longínquos anos de 354 e 430, e a quem um dia, numa praia, terá aparecido o Menino Jesus que, como é habitual em crianças, tentava encher uma covinha na areia com água do mar, usando uma concha como balde. 

A morte não é nada. Somente passei para o outro lado do caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, continuarei sendo.

Dêem-me o nome que sempre me deram, falem comigo como sempre fizeram.

Vocês continuam a viver no mundo das criaturas,
eu estou a viver no mundo do criador.

Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que o meu nome seja pronunciado como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo, sem nenhum traço de sombra ou tristeza.

A vida significa tudo o que sempre significou, o fio não foi cortado.
Porque estaria fora dos vossos pensamentos, agora que estou apenas fora das vossas vistas?

Não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho…

Tu, que aí ficaste, segue em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi.

Engenheiro Patrício e Becas.

Um bonito texto, antigo de mil e quinhentos anos, alusivo e actual. Sim, eu, a quem já sobram mortos na vida, conseguia perceber bem isso da permanência deles connosco, aqui ao lado, do outro lado da rua.

Mas e o cão que sobrou, ruminava de regresso a casa, como explicar-lhe que o seu dono, apesar de nunca mais o poder ir passear à praia, continuava do outro lado do caminho?







(A Manuel Patrício, in memoriam)


© Fotografias obtidas a partir de Lena Tenreiro.

18 dezembro 2022

WAYWARD HEART (english translation of Coração Independente)

 

Pode ler a versão completa do livro carregando no link à direita em "outras páginas"
You can read the full version of the book clicking on the link in "outras páginas"

25 novembro 2022

A FILOSOFIA DA CANÇÃO MODERNA: em jeito de Prelúdio ao novo livro de Bob Dylan

Da esquerda para a direita: Little Richard, 
Alis Lesley e Eddie Cochran.
The Philosophy of Modern Song [A Filosofia da Canção Moderna] - Bob Dylan

Edição original: Simon & Schuster, Nova Iorque, Novembro 2022, 339 páginas.

Edição em português: tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano, Relógio d'Água, Lisboa, Dezembro 2022.


Com Dylan, nunca se sabe. 

Se já teve oportunidade de passear os olhos pela lista das 66 canções comentadas no livro (pode consultar a lista no final deste texto), é plausível que se esteja a interrogar sobre a razão pela qual o autor optou por escolher estas e não outras. Mas Bob Dylan não nos informa nunca sobre as motivações da escolha, pelo menos de forma perceptível a curta distância. 

Ou, em alternativa, talvez possamos perguntar-nos se, sem margem para dúvida, estaremos perante 66 das melhores canções populares dos tempos modernos. Seria ousado afirmá-lo, mesmo recorrendo a alguns dos métodos possíveis para pesar a qualidade a uma canção, um dos quais, por grosseiro, consiste em olhar a amplitude e duração do seu sucesso público. Embora algumas das canções elegidas tenham alcançado sucesso planetário duradouro (como "Blue Moon," "Black Magic Woman," "Mack the Knife," "Strangers in the Night," "Volare," "Blue Suede Shoes" ou "My Prayer"), outras não passaram de êxitos já esquecidos ou exclusivamente circunscritos aos Estados Unidos da América.

Igualmente estão ausentes da selecção joias universalmente reconhecidas como tal, o que inclui aquelas de que o próprio Bob Dylan foi autor. Uma dessas ("Like a Rolling Stone," 1965) foi considerada, ao longo de décadas e em sucessivas votações especializadas, como a melhor canção pop de todos os tempos, e a última vez que tal sucedeu foi já em pleno século XXI (2004). Vamos supor que Dylan foi modesto ou quis evitar julgar em causa própria.

Quanto a um mérito que possa ser associado ao valor dos compositores das canções, não se encontra na lista canção alguma de autores/intérpretes que tenham deixado marca indelével na música popular—e na relacionada cultura global—e, mais naturalmente, a que corresponde à geração de Dylan: não se depara com uma canção dos Beatles, não há uma única composição de Leonard Cohen ou de Paul Simon (Simon & Garfunkel), nenhuma canção dos Velvet Underground, dos The Doors ou de Van Morrison, de Joni Mitchell, de Brian Wilson (The Beach Boys) ou de Chuck Berry. Tudo gente com quem Dylan privou de perto e admira, tendo mesmo referido Berry como o "Shakespeare do rock'n'roll".   

A páginas tantas, em observação marginal a uma canção que comenta, Bob Dylan deixa escorregar que um dos modos de avaliar a qualidade de uma música é pela quantidade de versões que outros fizeram dela. Mas mesmo seguindo essa sugestão não se chega a conclusão alguma, pois várias das canções dos ausentes que acabámos de citar geraram milhares de versões: "Yesterday," de Lennon e McCartney deu origem a cerca de três mil e "Hallelujah," de Leonard Cohen, acima das trezentas. Isto deixando, de novo, Dylan fora do concurso, uma vez que as suas canções engendraram, até à data, mais de cinco mil versões.   

Em que ficamos, então? Dylan, como é seu costume, faz o que lhe apetece e não se explica, tem até o gosto antigo de frustrar as voltas a quem tenta adivinhar-lhe tendências ou interpretar-lhe motivações. Ensaiemos, na tentativa de buscar o porquê de constarem aqui estas e não outras canções, o continuar a guiarmo-nos pelo peso de alguns números.

Das 66 canções escolhidas para comentário, a maioria foi originalmente lançada no mercado discográfico em single, um modo rápido de divulgar canções que se intuía poder estar destinadas a escalar ao topo das tabelas de êxitos nos dias em que a rádio era o principal veículo de difusão e o patrocínio comercial dos programas exigia uma interrupção da música de tantos em tantos minutos para que fosse passada publicidade. O single, ao contrário do LP (Long Playing), recorrendo a um suporte físico onde cabia apenas um par de canções (uma por face da estreita rodela de vinil) e tendo cada uma dessas faces a duração aproximada de três minutos, era o veículo ideal. Das canções escolhidas por Dylan, 37 (56 %) foram lançadas em single e 27 (41 %) dizem respeito a canções inseridas em LP, o que significa ter ele privilegiado as canções que singraram através do single, formato para consumo imediato e preparado para divulgação via rádio.

Olhar a data em que foram comercializadas estas canções permite-nos, até certo ponto, estabelecer uma conexão entre canções escolhidas/modo de divulgação: mais de metade (60 %) foram lançadas nos anos 50 e 60, época em que Dylan (nascido em 1941) contava entre dez e vinte anos de idade, isto é, estamos perante canções dos primórdios da sua formação musical, quando a rádio era praticamente o único meio para escutar música, sobretudo em local tão remoto como o Minnesota. Para além deste contingente maioritário, cerca de um quarto das restantes canções (26 %) respeitam às décadas de 70 e 80. As canções comercializadas em dias mais próximos de nós (anos 1990 a 2010) são apenas em número de quatro e uma delas ("Nelly Was a Lady") é, até, a versão recente de uma composição escrita em 1849. Igualmente quatro são as canções gravadas entre os anos 20 e 40 do século XX.  

Corroborando a importância e influência que a rádio teve em Bob Dylan, relembre-se que ao longo de três anos (2006 a 2009) o homem foi locutor de um programa de rádio de grande sucesso, chamado Theme Time Radio Hour. Como o nome indica, tratava-se de um programa temático e ao longo das suas mais de cem emissões foram glosados temas como nomes de mulher, a bebida, cães, o casamento e o divórcio, o tempo atmosférico, o hábito de fumar, etc. Na sua inconfundível e charmosa voz roufenha, mostrando grande talento como locutor, competia a Dylan ir comentando as canções que fazia ouvir, tecendo considerações aos intérpretes, ao ambiente em que a canção fora composta ou produzida comercialmente; revelando pequenas histórias relacionadas; ou entrelaçando reflexões sobre o tema do dia, o que podia incluir a leitura de poesia alusiva. Algo que, sob forma bastante mais desenvolvida, estruturada, reflectida e, até, mais livre no pensamento, volta a praticar nos capítulos do presente livro. Das 66 canções aqui contadas, cerca de um quarto foi passada nas emissões desse programa e, na sua quase totalidade, nas mesmas versões que Bob Dylan agora comenta.

E, mais uma vez, das mais de mil canções emitidas em Theme Time Radio Hour nenhuma teve como autor o locutor. 

. . . .

O que principalmente se encontra ao longo das páginas de A Filosofia da Canção Moderna são descrições, constatações e reflexões (técnicas, existenciais, sociais) feitas em tom coloquial e não poucas vezes tratando-nos por tu, considerações desencadeadas pelas canções escolhidas e que se espraiam aos intérpretes e compositores ou inclusive ao ambiente em que decorreu a génese ou a gravação dessas canções, canções que abarcam todo esse caldo rico e espesso que é a música dita popular: country e folkblues e rhythm & blues, gospel ou soul; uma mão cheia de rockabilly e rock'n'roll; uma pitada de jazz e de bluegrass. Conte ainda o leitor com a presença vincada e um gosto especial do autor pelos standards que os crooners e o jazz sempre se apressaram a interpretar e a adaptar aos respectivos mundos particulares.

Em alegre convivência e sem ordem aparente (cronológica ou outra), página a página desenrolam-se sob os nossos olhos canções de Elvis Costello e Bing Crosby, Little Richard e The Platters, Elvis Presley e Ray Charles, Hank Williams e Frank Sinatra, Nina Simone e Santana, Judy Garland e os The Who, Rosemary Clooney e os The Clash, entre muitos outros intérpretes, universalmente famosos ou nem por isso. Alguns, raros, terão direito a surgir com canções em mais do que um capítulo, como é o caso de Willie Nelson, Johnny Cash, Elvis Presley, Bobby Darin ou Little Richard. E certos deles, como sucede com Presley, Dean Martin, Johnny Cash ou Sinatra, verão os seus nomes ser amiudamente citados em comentários a canções interpretadas por outros.

Embora dominante nesta viagem, Dylan não se fica unicamente pela música norte-americana: com frequência chama por canções de nascimento europeu, mas não somente as de proveniência britânica, como seria de esperar num músico com as suas origens e língua materna. Para além dessas, há referências persistentes à chanson francesa, mas também à (primeiramente) alemã "Mack the Knife" ou à italiana "Volare (Nel blu, dipinto di blu)." O universo musical de raiz italiana é, aliás, omnipresente: repetidamente, quem lê tropeçará em cantores de voz velada e macia, americanos de nascença mas de ascendência itálica: tal vem a ser o caso com Frank Sinatra, Dean Martin, Bobby Darin, Perry Como, Dion ou Vic Damone.

A leitura evidencia igualmente o fascínio de Bob Dylan pelos crooners e pelos cantores de standards, fascínio já perceptível na fase da carreira em que se passeou quase exclusivamente por géneros como o folk, os blues e o rock, mais compatíveis com os anos que se viviam quando se tornou famoso. Em 1968, o álbum Nashville Skyline causou surpresa no público, pois nunca o repertório ou a voz de Bob Dylan tinham soado antes tão tranquilamente macios, e os críticos prontamente se arrepiaram com o perfume a Sinatra e Dean Martin que se exalava da obra. Indiferente, no disco seguinte (Self Portrait, 1970) Dylan vestiria de versões pessoais um renque de canções populares, uma das quais "Blue Moon," o clássico de 1934 de Hart e Rodgers tornado célebre pelas vozes de Mel Tormé, Billy Eckstine e Frank Sinatra, e de que Dylan escolheria a interpretação de Dean Martin para comentar no presente livro. Prestando tributo ao seu gosto duradouro por clássicos da música de entretenimento, três dos quatro álbuns mais recentes de Bob Dylan (Shadows in the Night, 2015; Fallen Angels, 2016; e Triplicate, 2017), são totalmente preenchidos por tentativas em recriar nada mais nada menos do que cinquenta e dois standardsda música popular das décadas de 30, 40 e 50 do século XX. 

Mas na órbita do rol das principais canções escolhidas gravitam centenas de outras músicas e de outros autores e intérpretes a que Dylan se irá referindo, seja porque se entrelaçam com as canções alvo de comentário seja para ilustrar a teoria (que lhe é querida e uma constante na música folk) de que todas as canções—como todas as obras de arte—vão nascendo umas das outras, e de que tudo influencia tudo. A esta luz surgem no texto referências à influência de linhas corais da Paixão Segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach, em "American Tune," de Paul Simon, ou de um andamento de uma sinfonia de Rachmaninoff sobre a melodia de "Never Gonna Fall in Love Again," de Eric Carmen, sucesso na voz do próprio compositor, mas igualmente nas de Tom Jones ou Frank Sinatra.

Para além da imitação como fonte de criação, Dylan discorre sobre uma outra questão, também frequentemente discutida a propósito da música cantada: o que é mais importante numa canção, a melodia ou as palavras? Como seria de esperar, Bob Dylan não toma partido por nenhum dos polos da questão, mas não deixa de trazer à colação, como contraponto ao alemão—idioma, segundo ele, apropriado a festivais de cerveja—a maravilhosa qualidade plástica e melódica da língua italiana, ou de ir deixando escapar como está longe de ser essencial compreender uma só palavra de português para sentir que o fado é um género musical que "pinga tristeza". Dentro deste tópico das letras, Dylan lembra ainda que as palavras usadas para servir uma canção não devem sujeição à lógica da linguagem, escrita ou falada, e que, ao invés do que se deseja a um texto ou a um diálogo, é musicalmente adequado repetir e voltar a repetir as mesmas palavras, exemplificando o paradoxo com versos das canções "Black Magic Woman," e "Keep My Skillet Good and Greasy." 

Ocasionalmente, Bob Dylan nem ao menos perde tempo a comentar a canção que escolheu comentar, desprezando-a ou ignorando-a totalmente e lançando apenas mão ao nome da canção para considerações relacionadas com esse nome, como sucede em "On the Road Again," de que usa o título unicamente para se alongar em cogitações sobre a sua experiência numa banda de música itinerante; em "Saturday Night at the Movies," em que aproveita a boleia para nos falar longamente de cinema; ou em "I Got a Woman," em que fabrica um pequeno conto cujo entrecho é o oposto do sentido da canção original e no qual o ponto de ligação entre ambos é o solo de saxofone que o protagonista principal batuca no volante do automóvel, ao mesmo tempo que vai ouvindo essa canção de Ray Charles.

Assim, num fraseado inteligente, divertido ou provocatório, pleno de duplos sentidos (não poucos deles musicais e dizendo respeito tanto à melodia como à rima), vai Dylan delineando e desenrolando a narrativa, servindo-se de canções alheias para discorrer sobre temas que, desde sempre, lhe são queridos: a estrada, o ir-se embora e a nostalgia da terra natal; os fora-da-lei e os seres solitários e à margem da sociedade; a hipocrisia; o valor da frugalidade na existência; as mulheres e o amor impossível; o cinema, a literatura e, claro, a música e os temperamentos de quem a pratica. E, igualmente, o tempo e o efémero da fama e do sucesso, a invencível derrota sempre associada ao desfolhar dos dias. 

Embora raramente se revele pessoalmente e directamente, ao seguir a leitura torna-se perceptível de onde veio, no que se lhe prende o olhar e a atenção, o que gosta e o que menospreza este homem, descendente de judeus de Odessa e nascido em 1941 em Duluth, pequena cidade mineira do Minnesota, como Robert Zimmerman. 

Quanto às canções que decidiu comentar, sem o incómodo de explicar porque o faz, uma coisa é certa: após a leitura—e sendo-nos ou não familiares anteriormente—dificilmente as voltaremos a escutar com os mesmos olhos. 

. . . .


 Todas as 66 canções podem ser encontradas no Spotify ou no  YouTube nas versões que Dylan optou por comentar. A excepção é "Nelly Was a Lady," em que Bob Dylan recorreu a uma versão interpretada por Alvin Yongblood Hart (2004) e da qual, à data, não se consegue acesso nesse site. Mas, desta canção, composta por Stephen Foster em 1849, podem ser ali ouvidas várias outras interpretações. 

No que diz respeito às letras das canções, é fácil encontrá-las na Internet, mas recomenda-se que, sempre que possível, se prefiram sites oficiais na consulta, uma vez que não é raro depararmo-nos com versões apressadamente transcritas e não correspondendo ao original, não só na transcrição das palavras, mas particularmente na disposição métrica dos versos das estrofes.

 

 

   Listagem das canções comentadas e intérpretes 


1. Detroit City (Bobby Bare) / 2. Pump It Up (Elvis Costello) / 3. Without a Song (Perry Como) / 4. Take Me from This Garden of Evil (Jimmy Wages) / 5. There Stands the Glass (Webb Pierce) / 6. Willy the Wandering Gypsy and Me (Billy Joe Shaver) / 7. Tutti Frutti (Little Richard) / 8. Money Honey (Elvis Presley) / 9. My Generation (The Who) / 10. Jesse James (Harry McClintock) / 11. Poor Little Fool (Ricky Nelson) / 12. Pancho and Lefty (Willie Nelson and Merle Haggard) / 13. The Pretender (Jackson Browne) / 14. Mack the Knife (Bobby Darin) / 15. Whiffenpoof Song (Bing Crosby) / 16. You Don’t Know Me (Eddy Arnold) / 17. Ball of Confusion (The Temptations) / 18. Poison Love (Johnnie and Jack) / 19. Beyond the Sea (Bobby Darin) / 20. On the Road Again (Willie Nelson) / 21. If You Don’t Know Me by Now (Harold Melvin and the Blue Notes) / 22. The Little White Cloud That Cried (Johnnie Ray) / 23. El Paso (Marty Robbins) / 24. Nelly Was a Lady (Stephen Foster) / 25. Cheaper to Keep Her (Johnnie Taylor) / 26. I Got a Woman (Ray Charles) / 27. CIA Man (The Fugs) / 28. On the Street Where You Live (Vic Damone) / 29. Truckin’ (Grateful Dead) / 30. Ruby, Are You Mad? (Osborne Brothers) / 31. Old Violin (Johnny Paycheck) / 32. Volare (Domenico Modugno) / 33. London Calling (The Clash) / 34. Your Cheatin’ Heart (Hank Williams) / 35. Blue Bayou (Roy Orbison) / 36. Midnight Rider (The Allman Brothers) / 37. Blue Suede Shoes (Carl Perkins) / 38. My Prayer (The Platters) / 39. Dirty Life and Times (Warren Zoe) / 40. Doesn’t Hurt Anymore (John Trudell) / 41. Key to the Highway (Little Walter) / 42. Everybody Cryin’ Mercy (Mose Allison) / 43. War (Edwin Starr) / 44. Big River (Johnny Cash and the Tenessee Two) / 45. Feel So Good (Sonny Burgess) / 46. Blue Moon (Dean Martin) / 47. Gypsies, Tramps & Thieves (Cher) / 48. Keep My Skillet Good and Greasy (Uncle Dave Macon) / 49. It’s All in the Game (Tommy Edwards) / 50. A Certain Girl (Ernie K-Doe) / 51. I’ve Always Been Crazy (Waylon Jennings) / 52. Witchy Woman (The Eagles) / 53. Big Boss Man Jimmy Reed) / 54. Long Tall Sally (Little Richard) / 55. Old and Only in the Way (Charlie Poole) / 56. Black Magic Woman (Santana) / 57. By the Time I Get to Phoenix (Jimmy Webb) / 58. Come On-a My House (Rosemary Clooney) / 59. Don’t Take Your Guns to Town (Johnny Cash) / 60. Come Rain or Come Shine (Judy Garland) / 61. Don’t Let Me Be Misunderstood (Nina Simone) / 62. Strangers in the Night (Frank Sinatra) / 63. Viva Las Vegas (Elvis Presley) / 64. Saturday Night at the Movies (The Drifters) / 65. Waist Deep in the Big Muddy (Pete Seeger) / 66. Where or When (Dion).          

 pedro serrano, 22 outubro 2022.